A Bíblia Sagrada
Em vista da fidelidade a Deus e a si mesmo, o povo foi fazendo uma seleção daqueles escritos que eram considerados de grande importância para a sua caminhada. Assim surgiu uma lista de livros, reconhecidos por todos como sendo a expressão da sua fé, das suas convicções, da sua história, das suas leis, do seu culto, da sua missão. Lidos e relidos nas reuniões e nas celebrações do povo, os livros desta lista foram adquirindo, aos poucos, uma grande autoridade. Eram o patrimônio sagrado do povo, porque lhe revelavam a vontade de Deus. Daí vem a expressão Escritura Sagrada.
Nós dizemos lista. Eles usavam uma palavra grega e diziam cânon, o que quer dizer lista ou norma. Os livros canônicos (cânon) eram a norma da fé e da vida do povo. Ora, esta lista de livros sagrados recebeu mais tarde o nome de Bíblia.
A Bíblia é o resultado final de uma longa caminhada, fruto da ação de Deus que quer o bem dos homens, e do esforço dos homens que querem conhecer e praticar a vontade de Deus. Ou seja, a Bíblia é o fruto de um mutirão prolongado do povo que procurava descobrir, praticar, escrever e transmitir aos outros e a nós a palavra de Deus presente na vida.
A Bíblia não foi escrita de uma só vez. Levou muito tempo, mais de mil anos. Começou em torno do ano 1250 antes de Cristo, e o ponto final só foi colocado cem anos depois do nascimento de Jesus. Aliás, é muito difícil saber quando foi que começaram a escrever a Bíblia. Pois, antes de ser escrita, a Bíblia foi narrada e contada nas rodas de conversa e nas celebrações do povo. E antes de ser narrada e contada, ela foi vivida por muitas gerações num esforço teimoso e fiel de colocar Deus na vida e de organizar a vida de acordo com a justiça.
No começo, o povo não fazia muita distinção entre contar e escrever. O importante era expressar e transmitir aos outros a nova consciência comunitária, nascida neles a partir do contato com Deus. Faziam isto contando aos filhos os fatos mais importantes do seu passado. Como nós hoje decoramos a letra dos cânticos, assim eles decoravam e transmitiam as histórias, as leis, as profecias, os salmos, os provérbios e tantas outras coisas que, depois, foram escritas na Bíblia. A Bíblia saiu da memória do povo. Nasceu da preocupação de não esquecer o passado.
A Bíblia não foi escrita no mesmo lugar, mas em muitos lugares e países diferentes. A maior parte do Antigo Testamento e do Novo Testamento foi escrita na Palestina, a terra onde o povo vivia, por onde Jesus andou e onde nasceu a Igreja. Algumas partes do Antigo Testamento foram escritas na Babilônia, onde o povo viveu no cativeiro no século VI antes de Cristo. Outras partes foram escritas no Egito, para onde muita gente emigrou depois do cativeiro. O Novo Testamento tem partes que foram escritas na Síria, na Ásia Menor, na Grécia e na Itália, onde havia muitas comunidades, fundadas ou visitadas pelo apóstolo São Paulo.
Ora, os costumes, a cultura, a religião, a situação econônica, social e política de todos estes povos deixaram marcas na Bíblia e tiveram a sua influência na maneira de a Bíblia nos apresentar a mensagem de Deus aos homens.
A conversa de Jesus com os discípulos de Emaús foi o primeiro Círculo Bíblico. Nele aparecem três pontos que devem estar sempre presentes na leitura e na interpretação que fazemos da Bíblia.
- Reflexão sobre a Realidade: Jesus soube criar um ambiente de conversa e, com muito jeito, forçou os dois a falar sobre os problemas da vida que eles estavam sentindo. Na conversa apareceu toda a realidade: a tristeza, o desânimo, a frustração dos dois, a sua falsa esperança de um messias glorioso, a decisão do governo e dos sacerdotes de condenar Jesus, a cruz e a morte, a conversa das mulheres que provocou espanto, a incapacidade dos dois em crer nos pequenos sinais de esperança (cf. Lc 24,12-24).
- Estudo da própria Bíblia: Jesus usou a Bíblia não tanto para interpretar e ensinar a Bíblia, mas muito mais para com ela interpretar os fatos da vida e animar os dois rapazes. Refletiu com eles, fez ver que estavam errados na sua maneira de explicar os fatos e mostrou, com a Luz da Bíblia, que os fatos não estavam escapando da mão de Deus. Isto exigia dele um conhecimento profundo da Bíblia. Jesus conhecia a Bíblia. Junto com os dois, ele soube encontrar aqueles textos de Moisés e dos profetas que pudessem trazer alguma luz para a situação de tristeza e mudar as idéias erradas que eles tinham na cabeça. Jesus não teve medo de criticar interpretações erradas da Bíblia. Pois o texto bíblico tem um sentido certo que deve ser respeitado, para evitar que se manipule o texto em favor das próprias idéias, como os judeus faziam (cf. Lc 24,25-27).
- Vivência comunitária da fé na Ressurreição: Jesus andou com eles, conversou, criou um ambiente de abertura e teve a paciência de escutá-los. Falando da vida e da Bíblia, agradou tanto, que o coração dos dois se esquentou, e eles chegaram a convidá-lo para o jantar. Ficou com eles, sentou à mesa, rezou com eles e fez a partilha do pão, como se tornou costume entre os cristãos que tinham tudo em comum. Jesus não só falou, mas colocou gestos bem concretos de amizade. Ora, tudo isso é o ambiente da comunidade, onde se procura viver como irmão. É aí que se faz a experiência da ressurreição, do Cristo vivo no meio de nós; a experiência de Javé, Deus libertador (cf. Lc 24,28-32).
Quando estes três elementos estão presentes na interpretação da Bíblia, aí a Bíblia atinge o seu objetivo e acontece o milagre da mudança: os discípulos descobrem a força da palavra de Deus presente nos fatos, começam a praticá-la e tudo se transforma; os olhos se abrem, as pessoas mudam; a cruz, vista como sinal de morte e de desespero, torna-se sinal de vida e de esperança; o medo desaparece, a coragem reaparece; as pessoas se unem, se reencontram e começam a partilhar entre si a sua experiência de ressurreição; os poderes que oprimem e matam já não causam desânimo; os dois discípulos começam a reler a sua própria caminhada e descobrem que tudo começou quando Jesus falava com eles sobre a vida e sobre a Bíblia; a fé se afirma, a esperança se renova e o amor abre novos caminhos (cf Lc 24,33-35).
Interpretar a Bíblia, sem olhar a realidade da vida, é o mesmo que manter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa; é como galho sem tronco, olhos sem cabeça, rio sem leito.
Pois a Bíblia não é o primeiro livro que Deus escreveu para nós, nem o mais importante. O primeiro livro é a natureza, criada pela palavra de Deus; são os fatos, os acontecimentos, a história, tudo que existe e acontece na vida do povo; é a realidade que nos envolve. Deus quer comunicar-se conosco através da vida que vivemos. Por meio dela, Ele nos transmite e sua mensagem de amor e de justiça.
Mas nós homens, por causa dos nosso pecados, organizamos o mundo de tal maneira e criamos uma sociedade tão torta, que já não é mais possível perceber claramente a voz de Deus nesta vida que vivemos. Por isso, Deus escreveu um segundo livro que é a Bíblia. O segundo livro não veio substituir o primeiro. A Bíblia não veio ocupar o lugar da vida. A Bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o sentido da vida e a perceber a presença da palavra de Deus dentro da nossa realidade.
Santo Agostinho resumiu tudo isso da seguinte maneira: a Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrita para nos ajudar a decifrar o mundo, para nos devolver o olhar da fé e da contemplação, e para transformar toda a realidade numa grande revelação de Deus.
Por isso, quem lê e estuda a Bíblia, mas não olha a realidade do povo oprimido nem luta pela justiça e pela fraternidade, é infiel à palavra de Deus e não imita Jesus Cristo. Ele é semelhante aos fariseus que conheciam a Bíblia de cor, mas não a praticavam.
LIvro: Introdução Geral - Bíblia Sagrada - Editora Vozes - 12ª edição
O Espiritismo e a Bíblia
PERGUNTA: Que podeis dizer sobre a Bíblia?
RAMATÍS: A Bíblia é um conjunto de antigos livros que descreviam a vida e os costumes de vários povos. Mais tarde foram agrupados e atribuídos a uma só etnia, conhecida por hebréia.
PERGUNTA: Seria um tratado científico ou filosófico da antigüidade desses povos?
RAMATÍS: Não; o seu principal valor e fundamento é a revelação religiosa. O Velho Testamento, apesar do seu sentido simbólico e alegórico, somente entendido pelos iniciados da época, é repositório valioso da "revelação". Esse sentido iniciático perde a nebulosidade com o progresso científico do mundo atual; e a Bíblia parece-nos agora uma história inverossímil e mesmo infantil. No entanto, quanto à sua época, jamais poderia ser diferente!
Mas, à medida que cresce a compreensão humana e a própria ciência do mundo, vai-se desvestindo a revelação bíblica de suas alegorias iniciáticas ajustadas à época em que foi escrita.
*(grifo nosso)
PERGUNTA: Qual a causa da verdadeira ojeriza dos espiritualistas modernos com referência à Bíblia? Principalmente os espíritas?
RAMATÍS: Desde que os espiritualistas crêem na influência da hierarquia espiritual sobre a Terra, não podem desprezar a Bíblia, embora não queiram admiti-la como roteiro ou fonte de pesquisas e soluções espirituais. Apesar de sua linguagem fantasiosa e alegórica, representa o esforço máximo feito pelos Espíritos, no passado, no sentido de se comprovar a glória, o poder e as intenções de Deus.
*(grifo nosso)
PERGUNTA: No entanto, todos os religiosos que adotam a Bíblia consideram-na diretamente revelada da "palavra de Deus"! Que dizeis?
RAMATÍS: Não se pode atribuir ao texto bíblico o caráter vertical da "palavra de Deus"; mas os espíritas sabem que se tratava de mensagens mediúnicas comunicadas por emissários do Alto através de médiuns poderosos, tal como Moisés, Jeremias e outros. A mentalidade dos povos daquela época e o seu modo de vida exigiram que as revelações não ultrapassassem a sua capacidade de entendimento, tal como acontece hoje, quando o homem moderno domina a terminologia de fluidos, ondas, átomos, energias, radiações, forças mentais e etéricas.
*(grifo nosso)
PERGUNTA: Mas a Bíblia estabelece a sua revelação pela "Voz de Jeová", o que implica em se considerar diretamente do Criador!
RAMATÍS: O povo, muito supersticioso, não estava preparado para aceitar e confiar nos poderes e revelações de almas semelhantes aos seres humanos, o que enfraqueceria bastante a revelação espiritual. No entanto, a "Voz de Jeová", ou de Deus, seria aceita unanimemente, quer pelo temor, como pela impossibilidade de os hebreus avaliarem a natureza sublime e poderosa do Senhor!
Mas a verdade é que, em seu fundamento, assentam-se todos os esforços posteriores e o êxito no sentido de haver sido compreendida a unidade de Deus, que Moisés depois consolidou no Monte Sinai. Havia necessidade dos médiuns, na época, atribuírem uma grande autoridade às mensagens recebidas, a fim de serem acreditados pelos seus conterrâneos. Aliás, a mentalidade humana não mudou muito, pois ainda hoje, nos centros espíritas e terreiros de Umbanda, os médiuns continuam a receber entidades de elevada estirpe sideral, materializando-as de modo a se promiscuírem com as paixões terrenas!
Os homens ainda não se aperceberam de que o ensejo mediúnico não tem por finalidade precípua a produção de milagres, assistência incondicional às tricas do mundo material e resolução de problemas humanos que pedem o discernimento e a iniciativa pessoal. Ignoram que a presença dos elevados prepostos do Senhor obedece ao programa de libertação espiritual, em vez de contribuição no sentido de maior satisfação nas atividades transitórias da matéria. Tanto quanto no tempo de Moisés, hoje ainda se explora os desencarnados para solucionarem as conseqüências nefastas das imprudências humanas!
Livro: Ramatis - A Missão do Espiritismo